Os raviolis das netas das bruxas que não conseguiram queimar

Nosso almoço do próximo sábado envolve um ingrediente um tanto polêmico, o trigo.
Um dos cereais mais cultivados do mundo, atrás apenas do milho, é um símbolo fundamental da cultura europeia e ocidental além de base da colonização alimentar industrial.463551_(www_GdeFon_com)Ele também é um dos pivôs da revolução agrícola, seu cultivo assegurou o emergente processo de domesticação da vida baseado na criação (e objetificação) de animais e na propriedade privada da terra, culminando na formação de comunidades mais complexas e hierárquicas. Em outras palavras é possível dizer que o trigo está para a história da civilização como o homem está para o antropocentrismo, e como não podemos negar estes marcos, podemos pelo menos tentar visibilizar alguns usos culturais que trazem, nas suas relações com o cereal, aspectos e valores aptos a inspirarem uma vida voltada para a construção de relações questionadoras aos princípios do capitalismo.

Vindo do crescente fértil no Oriente Médio, antes da modernidade elegê-lo como símbolo da cultura europeia, o trigo foi presente na alimentação dos povos que habitavam os atuais Síria, Jordânia, Turquia, Israel e Iraq. Os celtas cultivaram o trigo como meio de subsistência e também usaram o grão nos seus rituais religiosos. Este povo foi bravo inimigo do hegemônico Império Romano, vivenciaram experiências nômades e organizavam-se sob uma perspectiva matrilinear, o que garantia as mulheres ocupar posições em relativa igualdade social, representando uma estrutura social bastante peculiar e praticamente única para o período. Um conhecido direito das mulheres celtas era o de poder anular o casamento, além de não serem poucas as referências de mulheres guerreiras e poderosas, independentes e até dominantes, sendo todas senhoras de si mesmas.

8134783701_8a62e96013_oO cultivo o trigo pelos Celtas também envolviam a Primavera Sagrada que consistia na divisão da tribo: Quando o número de habitantes crescia, a migração era estimulada como processo de renovação, associando a prática a percepção cíclica e não linear da vida. O Festival do Sabbat que marca o início das colheitas, é dedicado ao pão. Colhe-se os primeiros grãos para preparar um grande pão comunitário que será consagrado com vinho e repartido entre todos dentro do círculo. O primeiro gole de vinho e o primeiro pedaço de pão deviam ser jogados dentro do caldeirão, para serem queimados juntamente com os agradecimentos e frustrações, lembrando que deveriam se livrar de tudo o que é antigo ou desgastado para que possamos colher uma nova vida e preservar o presente.

Wheat and WeedsInspiradas pela relação dos Celtas com o trigo, acabamos optando por preparar deliciosos raviolis, já que, assim como tudo que fazemos, eles também tem a tradição de serem preparados em casa e de maneira artesanal. A iguaria da forma como é apresentada tem nascimento registrado no norte da península itálica, região que os celtas ocuparam até serem expulsos e dominados pelo Império Romano. Porém como em alimentação nada é tão exato e sim um processo longo e difuso, compartilhamos uma hipótese muito bem difundida de que a ideia foi levada a Europa por Marco Polo em suas incursões pela China, onde se consome muito Guioza e Wonton, que nada mais são que massas de trigo recheadas ou não, servidas fritas ou cozidas. É importante registrar também que o Ravioli também já era conhecido na Inglaterra do século XIV sob o nome de rauioles, podendo ser velho do que os famosos parentes italianos.

Guioza, iguaria ancestral do ravioli
Guioza, iguaria ancestral do ravioli

E nesta sábado, 04/06, para acompanhar a nossa massinha feita com farinha integral orgânica e recheada com folhas verdes, pensamos no nosso já aclamado molho de tomate artesanal, o cremoso e suculento queijo de girassol, gram-queijo ralado que nada mais é que uma incrível pasta de grão-de-bico hidratado, assado, defumado e ralado regando toda a massa e uma nutritiva e saudável salada panc. Sucos das frutas disponíveis na mata e na Feira Agroecológica Chico Mendes, além de um saboroso sorvete de cacau feito a partir da biomassa de banana verde com calda de hibiscus.

IMG_1348Resgatar a história, visibilizar marginalidades ancestrais e sua lógica de organização e relação com a comida, além de desconstruir as verdades que enaltecem os Estados Nacionais pela alimentação faz parte de nossa proposta de descolonização alimentícia e nosso compromisso com a artesanalidade, a autonomia e a propagação de informações dissidentes.

SERVIÇO:
SABAMATA – Ravioli de folhas verdes
Dhuzati – Casa lilás da estrada dos macacos, rua da biblioteca da UFRPE
A partir de 12hrs.

Mais informações:
Davidson, Alan, ed. (1999). The Oxford Companion to Food . Oxford University Press.
Rice, Anne, 1988. La reina de los condenados. Edición Electrónica: (2002) Pinch

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