Veganismo ou antiespecismo de base ancestral?

“De origem inglesa, profundamente marcado pelo consumo e consequentemente fundado em preocupações elitistas sobre estilo de vida, concluímos que localizar branquitude no veganismo é redundante, já que ele nasce como produto de uma população que se beneficiou com o julgamento das experiências de outros povos com os animais não humanos. Classificando práticas nativas e comunais como irracionais, selvagens e primitivas, a dominação colonial e sua verdade urbanística, higienista, cristã, mercantilista e globalista instituiu o apocalipse de vários mundos e suas cosmovisões.”

Este é um trecho do ensaio “Boicote ao veganismo e o resgate de relações ancestrais com os animais” que escrevemos durante a pandemia com lançamento em breve! Embora nosso propósito seja aprofundar o entendimento racial das filosofias políticas para que a comunidade negra e indígena atue politicamente a partir de práticas descoloniais, afirmando visões de mundo que podem fazer o percurso de fornecer munições para a destruição da supremacia branca e do especismo, racismo, sexismo e capitalismo enquanto tecnologias de dominação civilizatória, é importante deixar em negrito que reconhecemos e apoiamos a disputa do termo e entendemos que ela é um compromisso ético que tem como principal objetivo desmascarar o oportunismo liberal e deslegitimar a consolidação de um padrão de consumo enquanto movimento político.

Nós, que já fizemos uso do termo veganismo descolonial e veganismo negro, guiadas por uma radicalidade que considera a ética política distante da moral e que preza a emancipação dos sistemas de opressão consolidados pela supremacia branca, ao acessar a história e genealogia do veganismo é óbvio concluir que, a mesma branquitude, herdeira da acumulação capitalista promovida pela domesticação de animais, pelo tráfico atlântico de pessoas pretas, pelo extermínio de povos indígenas e pela industrialização, devolve a solução sobre sua relação com os não humanos, diante uma exploração animal nunca antes experimentada – e que ela mesma criou – com a alcunha de veganismo. De Pitágoras à Tom Regan, passando por Sylvester Graham, Tolstoi e Gary L. Francione os princípios que envolvem a consideração dos animais não humanos referenciados na história do veganismo, ora perpassa uma pureza higienista, ora uma religiosidade moralista e até mesmo um decoro racista que reflete diretamente na ascensão de uma arrogância supremacista, implicando na crença de uma superioridade benevolente sobre si mesmo, da mesma forma que os homens brancos europeus se intitularam únicos representantes legítimos do humano.

No texto nos debruçamos sobre as cosmologias Iorubá e Wuyjuju para contextualizar nossa posição, porém é importante também destacar os principios do Ma’at da antiga civilização kemita, onde honrar os animais não humanos é um dos fundamentos de manutenção da ordem que eram seguidos pelos kemitas e tornou-se a base das leis do Kemet. No reino espiritual e simbólico, os animais desempenhavam um papel importante como representações divinas e exemplificavam aspectos de certos conceitos éticos. Muitas das divindades egípcias foram concebidas como seres que são parte humanos e parte animais, refletindo a interconexão entre os dois. Philippe Germond, professor de egiptologia da Universidade de Genebra autor de “An Egyptian Bestiary” afirma:

“qualquer tendência de favorecer apenas a forma humana de qualquer divindade dada, em detrimento da forma animal original, estaria fundamentalmente em desacordo com os princípios básicos do pensamento egípcio da época”. Essas representações espirituais afirmam como a sacralidade não é apenas um aspecto humano, mas uma expressão de todos os seres vivos. Isso afasta ainda mais a ética maatiana das mentalidades que colocam os humanos muito acima dos animais e apóia a unidade do ser.”

Ainda de acordo com Germond, de todas as primeiras civilizações do mundo, foi o Kemet que promoveu o relacionamento mais próximo com o mundo animal. Todos os aspectos da vida, tanto seculares quanto sagrados, deram lugar de destaque ao envolvimento vital do humano com criaturas vivas de todo tipo. Camponeses e artesãos, governantes e sacerdotes tratavam os animais não como meros objetos utilitários, mas como símbolos da criação iguais na hierarquia da vida aos próprios humanos e intimamente ligados tanto à existência cotidiana quanto ao reino dos deuses. As fotografias magníficas no livro mostram a riqueza incomparável da fauna em todas as formas de expressão artística, pintura, escultura, escultura em relevo, ornamentação arquitetônica e até mesmo em hieróglifos. Eles variam de realismo surpreendente na representação de animais selvagens e domesticados com o qual o povo do Vale do Nilo entrava em contato diário, para estilização hierática ao retratar o panteão de deuses com cabeças de animais e as criaturas sagradas fabulosas que habitavam seu mundo devocional, funerário e mágico. As descrições acadêmicas e legendas informativas que acompanham este bestiário incrível colocam cada animal representado em seu contexto, ao meio ambiente e aos deuses. De gansos a macacos, de crocodilos a escorpiões, a lista é virtualmente infinita.

Perseguidos por muitos veganos racistas pelos rituais de sacralização, existem estudos que trazem o povo Iorubá como um dos herdeiros contemporâneos da cosmologia kemita, algum dos aspectos relacionados é concepção divino-animal-humano, onde os orixás também tem represetação animal. Na imagem iorubás pintados com referência na Guiné ou Galinha de Angola, ave africana nativa da região sub-saariana.

As referências ancestrais jamais devem ser apreciadas e consideradas por um olhar romântico/purista ou até mesmo sob uma tentativa torpe de replicar preceitos de uma cosmologia dissolvida na história. Buscar as contradições e preservar o olhar crítico a cerca de práticas que hoje desnaturalizamos também é fundamental para guiar as inspirações e possibilidades de perspectivas sociais conectadas com uma história apagada e que está sendo resgatada como uma estratégia antiespecista e antiracista. Especialmente neste caso é preciso também destacar que os kemitas eram uma civilização, domesticaram animais para uso alimentício e também praticaram o que conhecemos hoje como exploração animal.