Ensaios sobre anarcozinha e culinarquia

captO hábito de comer é anterior até mesmo a própria humanidade e este é, sem dúvidas, o ponto mais elementar que permite a formação de individues, grupos e comunidades humanas. Esta nossa necessidade básica nos coloca em relação direta com o meio em que vivemos, afinal precisamos extrair e coletar o que a natureza tem disponível para manter nosso corpo ativo e vivo.

A forma como satisfazemos esta nossa necessidade biológica é cultural e cada cultura organiza preceitos, técnicas, filosofias e métodos para comer de acordo com sua realidade. É atentando a isto e principalmente a grande inquietação sobre os rumos e diretrizes de uma de nossas necessidades mais básicas, que consideramos a dimensão política da alimentação um campo extremamente estratégico.

2001_10151390422564401_882487041_nComunidades humanas sempre possuíram uma ética sobre o que e porque comer, e esta é construída basicamente pelos alimentos que o meio em que se vive oferece, pela construção social e histórica das populações e sobretudo pela forma que é conduzida as relações de poder em seu interior. Estes aspectos permite que a alimentação seja utilizada como meio propício para repassar, reproduzir e consolidar os mais importantes valores e princípios de uma cultura. Com isso, concluímos que uma cultura alimentícia tem um forte compromisso para a manutenção de uma cultura política e social.

11831729_10153049269662957_1487054809575768089_nNão foi por acaso que naturalizamos o extermínio de alguns animais não humanos, nos acostumamos com a industria da morte, ressignificamos partes de corpos em embutidos e enlatados e vimos tão rapidamente refrigerantes e misturas químicas cheias de conservantes e realçadores de sabor – elaboradas criteriosamente para atingir as sensações captáveis pelas nossas papilas gustativas – invadirem nossas refeições e rituais. Tampouco foi espontânea a criação dos grandes esquemas baseados em enormes plantações de grãos transgênicos regados com agrotóxicos, plantados em latifúndios, quimicamente alterados por fertilizantes industriais, que servem para alimentar animais considerados assassináveis, além de base para diversos produtos cheios de compostos químicos, vendidos em supermercados substituindo os alimentos naturais e anunciados pelos meios de comunicação corporativos como saudáveis, apetitosos e fascinantes.

mcpunkSegundo Michel Pollan no livro a ‘Dieta do Onívoro’, existem três grandes cadeias alimentares: a da coleta, a orgânica e a industrial. Esta última é bem recente e começou a ser construída no século XX com base em uma ideologia do nutricionismo, defendida e criada pela recente indústria alimentícia, que conseguiu ter poder e influência para gerar consenso em torno de três mitos:

  1. o mais importante não é o alimento, mas sim o nutriente;
  2. por ser este invisível e incompreensível, precisamos de especialistas para decidir o que comer
  3. o objetivo da alimentação é promover a saúde física.

Três mitos que enaltecem não só a industrialização e a Ciência, mas induzem fortemente a alienação sobre a barbárie e a produção agropecuária, delegando a responsabilidade e os cuidados de nossa necessidade vital para os grandes pilares do Projeto Moderno.

A capacidade criativa alimentícia e as culturas alimentares harmônicas e horizontais foram sequestradas e drasticamente decomposta com os milhares de químicos utilizados pela indústria de alimentos e pelos princípios da lógica de superioridade antropocêntrica.

2-2Ensaiar sobre anarcozinha e culinarquia, portanto, é pensar sobre as condições de alienação e hierarquia que nós e nossa comida estão submetidas para fins de dominação e estimular práticas e possibilidades para uma alimentação livre, anti-especista, artesanal e não predatória que valorize os princípios e a ética de filosofias políticas plurais, horizontais, comunalistas, libertárias e anarquistas. Acreditamos que nesta realidade mercantil imposta, ter o controle e o domínio dos meios que facilitam nossa produção para poder conquistar nossa autonomia é experimentar uma relação de produção mais justa. Também vemos como importante construir outras alternativas que não sejam meramente financeiras ou de troca, mas também de dádiva, de solidariedade, de apoio mútuo e de propagação de informação.

Contudo, apesar de impulsionarmos e apresentarmos alguns caminhos para a desconstrução desta cultura alimentar, não cabe a nós (e nem a ninguém) a autoridade para dizer o que você irá comer no jantar. A concretização de outras concepções alimentares não poderá jamais ser seguida como regra a partir de indicações de “especialistas” e sem priorizar as distintas realidades, desta forma estaríamos simplesmente mudando quem regeria as políticas desta nossa necessidade. Culturas Alimentícias Livres só serão possíveis se nós destruirmos a alienação que nos foi imposta protagonizando as políticas de nosso próprio processo de alimentação a nível local e comunitário.

980289c8955b8ea583d9ab2a5b1609f5Acreditamos no veganismo como perspectiva política elementar na busca por uma alimentação vegetariana estrita, livre, saudável e horizontal e é a partir desta filosofia política que sugerimos algumas estratégias que podem inspirar novos fazeres rumo a uma vivência emancipadora

Reciclagem de Alimentos
O ponto básico do veganismo popular. A atual produção de alimentos é realizada considerando uma grande margem de desperdício e perca. O problema da fome é distribuição e não produção, em locais como CEASA ou feiras livres é possível coletar todos os dias grande quantidade de vegetais que irão parar no lixo por estarem em condições não comercializáveis ou em processo de estrago. Você pode aproveitar estes alimentos, tanto para as refeições de casa, quanto para produzir beneficiados

Coleta de Alimentos
Na maioria das cidades existem árvores frutíferas espalhadas pelas ruas, o mapeamento destas árvores junto com a coleta destes frutos de maneira sistemática e organizada pode fazer sua mesa mais farta, servir como fonte para beneficiamento e para além disso, a experiência de coleta nos deixa aptas para vivenciar a sazonalidade e temporalidade dos alimentos de forma única.
Devido a colonização alimentar, existem muitas espécies vegetais comestíveis com imenso potencial nutritivo que desconhecemos, elas são chamadas comumente de PANCS – Plantas Alimentícias Não Convencionais e muitas aparecem como matos espontâneos nas ruas. Uma busca na sua região sobre estas plantas pode te despertar sobre a inimaginável oferta de comida em potencial que tanta gente ignora em função de um padrão alimentício eurocentrado.

Cooperativas de consumo
Juntamente com alguns amigos ou vizinhos você pode apoiar pequenxs produtorxs e estabeler uma relação direta de produção e consumo. A companheirada que produz nos assentamentos do MST, por exemplo, já tem alguma experiência com este tipo de organização e várias comunidades campesinas já se articulam produzindo para grupo de pessoas.
Também é possível articular uma cooperativa de consumo entre produtores de alimentos. Quem produz farinhas, hortaliças, frutas, legumes ou verduras pode trocar a produção por produtos beneficiados ou por outros no qual se há necessidade.

Produção e Beneficiamento de Alimentos
Isto pode render autonomia suficiente tanto para trocar o que você produz por outros alimentos, tanto para passar por consumidores não produtores.
Frutas muito maduras, que comumente irão parar no lixo, podem dar origem a maravilhosas geleias, compotas, licores ou bebidas fermentadas.

Hortas Comunitárias Agroecológicas
Você pode ocupar um terreno baldio no seu bairro e articular com a comunidade a construção de uma horta comunitária, isto lhe renderá muita autonomia, além de um empoderamento político imenso. Grupos que praticaram esta experiência além de garantirem a subsistência alimentar conseguiram organizar redes de consumo orgânico e produção artesanal. Plantar árvores frutíferas num terreno ocupado tendo uma boa assessoria jurídica pode render além da posse pública do terreno, o pagamento de indenizações por árvores plantadas.

bc9617ceded0cfa8f798f3cd8e5e8fbeNão temos aqui uma proposta final contrária e de rompimento com as atuais normativas mercantis da alimentação, pensamos, como diz o Manifesto Por Uma Culinária de Guerrilha, que tais estratégias são um meio possível de desvio radical em relação às práticas cômodas do consumismo e do trabalho, e não um fim absoluto que traz soluções em cadeia para os problemas globais. Ensaiar propostas alimentares de perspectivas libertárias é sobretudo realizar trocas ilimitadas de experiências referentes ao cultivo, coleta, produção, armazenamento e degustação de alimentos, sem mestres e alunos, sem oradores e ouvintes, hoje, aqui e agora.

A culinarquia e a anarcozinha existirá hoje em múltiplas linhas de fuga entre as regulações do estado e as alienações alimentícias do mercado. Onde não existir desmando, mercantilização de vidas e apatias, você pode estar anarcozinhando. Falar sobre um futuro alimentício anticapitalista é um crime se deixarmos de fomentar e vermos as possibilidades de uma vida não subordinada agora. Portanto, mãos a massa.

Veja Também:

Livros/Textos Filmes/Vídeos
Dieta do onívero
Michael Pollan
Tornallon,
Manifesto por uma culinária de guerrilha
Antichef Semkara
The Garden
Receitas para utopias
Bonobo
A Verdade Indigesta
Chefs Vs. Cozinheiras
Coletivo Até o Talo
New Bees
Quanto a autonomia me contagiou
Coletivo Até o Talo