Reflexões do jornalista Rodrigo Almeida sobre a atividade realizada pela Dhuzati no #OcupeEstelita

Nesta quarta, realizamos uma roda de diálogo no #ocupeestelita que objetivava comparar a lógica política dos conjuntos habitacionais com as dos campos de concentração para pensar ocupação territorial a partir da autonomia e da soberania alimentar.

Ao ter contato com as impressões do jornalista Rodrigo Almeida sobre as violências implicadas nos processos de ocupação das cidades, resolvemos compartilha-las para ampliar e prolongar mais um pouco o debate

“durante as atividades noturnas do #ocupeestelita, ontem, foram exibidas algumas entrevistas com pessoas transferidas / removidas de diferentes lugares da cidade, especialmente das palafitas de brasília teimosa e da vila vintém, alocadas num conjunto residencial no bairro do cordeiro. a sonhada promessa de “agora você vai ter uma casa!”, no entanto, foi revelando sua faceta hostil: a falta de emprego se tornou generalizada pela distância “do sustento que tiravam do mar” ou “do que sabiam fazer antes”; o conjunto virou o bode expiatório de todos os problemas, de dengue a assaltos, ocorridos na vizinhança burguesa; o cotidiano passou a ser marcado pela convivência diária com uma repressão policial ostensiva, espancamentos, mortes, arquitetando, atrás daquelas paredes úmidas, a impossibilidade de voz e escuta. os moradores sabiam de uma coisa: eles não eram dali.

Nordeste do Brasil, Dezembro de 2009. Northeast of Brazil, December 2009.A realizadora do vídeo e também moradora parte desse processo, comentou sobre o período de mudança e supostas aprovações entre os lados envolvidos, ressaltando a falta de disponibilidade de diálogo com a parceria entre prefeitura, odebrecht e banco do brasil. Os problemas também eram estruturais, parte da rede de esgoto tinha vazado e contaminado a rede de água de alguns apartamentos, os condomínios foram pensados – sem a concordância da comunidade – com pouco espaço de lazer e um amplo e exagerado estacionamento, onde praticamente não existiam carros entre os residentes, espaço que terminou sendo ocupado pouco a pouco com barracos ou pequenas lojas. os entrevistados foram enfáticos em dizer que, apesar de tudo, suas vidas tinham piorado. “aqui não é o lugar para criar os meus filhos”.

essa história me lembrou quando, há uns três anos, visitei a comunidade quilombola ‘negros do osso’, na zona rural de pesqueira, requisitado basicamente para passar três dias conversando com as pessoas e descobrir possíveis personagens para um documentário. a comunidade estava passando por uma grande transformação: o banco do brasil tinha começado a construção de casas de alvenaria no lugar das antigas casas de taipa, iniciativa que a princípio parecia maravilhosa, incontestável, a realização do sonho de “agora vamos ter uma casa”. como não sabia o caminho, encontrei o arquiteto do projeto para irmos juntos e confesso que fiquei cabreiro com o rapaz desde o primeiro contato, pois ele, com bastante pressa, soltou “vamo logo que não quero passar mais de cinco minutos lá”. alguma coisa estava estranha nessa história.

d34d54646a9a808a34d6e9323784b72d1367454795enfim, seguimos e chegamos na comunidade. o profissional convocou alguns moradores para fazer uma visita rápida em duas ou três casas quase prontas, desenvolvendo um discurso bizarro onde ele se colocava como protagonista do processo, quase pedindo uma veneração das pessoas “por ter construído suas casas” (vale dizer que os próprios moradores estavam no papel de pedreiros sob as ordens de um mestre de obras). daí chegamos na cozinha, ele começou a explicar que abriu um vão lá no alto pra ventilar a geladeira… oh, wait… ele, então, parou, olhou por um segundo – e talvez pela primeira vez – para os presentes e perguntou: “vocês têm geladeira aqui?”. os moradores balançaram a cabeça negativamente, ele constrangido acelerou o passo da visita, pegou seu carro e foi embora. depois soube que o rapaz nunca tinha se prestado a conversar com as pessoas que iriam morar nas casas que ele tinha projetado. o vão da geladeira era apenas um detalhe.

depois dessa rede de histórias e lembranças, fiquei matutando antes de dormir que essa situação se repete em todos os lugares: vivemos uma cidade projetada por pessoas que não vivem a cidade ou que pensam a rotina da cidade como meu-condomínio-de-luxo-trabalho-shopping; lidamos com um transporte público desenvolvido por quem não usufrui desse transporte, anda-só-de-carro-e-quer-mais-vias; todos os tais grandes projetos para melhorar a vida da cidade e das pessoas surgem sem que justamente essas pessoas e essa cidade façam parte do processo. a verticalização não está apenas nas plantas, nos edifícios, assombrando a paisagem, mas na forma como as coisas são encaminhadas, decididas, assinadas, implementadas. acredito que o #ocupeestelita além de pontualmente contra a construção do novo recife, surge como uma espécie de levante contra uma lógica muito maior, impulsionando para o núcleo do “pensar a cidade” o antes revogado protagonismo de todos nós, cidadãos.

isso, meus queridos, costuma assustar.”

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